Adcap Net 02/09/2021 – Por que a privatização dos Correios nos moldes do PL 591/2021 é inconstitucional? – Veja mais!

Conjur
02/09/2021

A prestação dos serviços postais pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT/Correios) novamente ganha espaço de discussão, mas, desta vez, no Legislativo brasileiro, após movimentação dirigida pelo governo federal. Desde o início do mandato atual, a pasta econômica do governo federal tem divulgado e posto em prática a intenção de executar diversas privatizações de empresas sob controle estatal, a exemplo da recente viabilização do processo de privatização da Eletrobrás.

Com relação aos Correios, a pasta econômica tem caminhado, agora a passos mais largos, para também viabilizar a sua problemática privatização.

Já na época da inclusão dos Correios no Programa de Parceiras e Investimentos (PPI), ventilavam comentários sobre a dificuldade de se privatizar a empresa [1], com entraves maiores do que os visualizados em relação à privatização da Eletrobrás. O processo dos Correios demandaria aprovação de proposta legislativa que alterasse a Constituição da República — ou seja, uma proposta de emenda à constituição (PEC) —, cuja tramitação é significativamente mais árdua. Afinal, estamos tratando da modificação do texto constitucional.

Alheio a esses comentários, o governo federal decidiu apresentar o confuso Projeto de Lei nº 591, em 24 de fevereiro de 2021 (PL 591/2021), que, entre outras medidas, permite a exploração dos serviços postais pela iniciativa privada, altera a legislação para comportar a criação do chamado Sistema Nacional dos Serviços Postais, migra a regulação dos Correios para a Agência Nacional de Telecomunicações (Antel), e finda por autorizar a transformação da estatal em sociedade de economia mista.

Tramitando inicialmente na Câmara Federal, esperava-se que as discussões quanto à constitucionalidade do PL 591/2021 acontecessem, mas o projeto foi direto à apreciação do Plenário, sem passar pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), na qual houve aprovação, com 286 votos favoráveis — mais do que o suficiente para aprovar um projeto de lei, mas não uma PEC, que precisa de 308 votos [2], diga-se de passagem —, do texto substitutivo do deputado Gil Cutrim (PDT-MA), inclusive ampliando as possibilidades de desestatização dos Correios, mesmo sob diversas alegações de inconstitucionalidade clamadas na tribuna pelos deputados e deputadas da oposição.

Mas por que exatamente a privatização nos moldes do PL 591/2021 seria inconstitucional?

O principal apontamento diz respeito à incompatibilidade da matéria ao texto constitucional vigente, visto que a Constituição Federal prevê a manutenção dos serviços postais de forma exclusiva pela União, não abrindo espaço para a exploração pela inciativa privada. Seria então impensável a privatização da estatal sem a prévia aprovação de PEC modificando o texto constitucional, posto que a redação atual impede a exploração dos serviços postais pelo setor privado (o artigo 21, X, da Constituição Federal), e, portanto, a venda dos Correios. Vejamos como está disposto o mencionado artigo 21, X, da Lei Maior:

“Artigo 21 — Compete à União:
(…)
X — manter o serviço postal e o correio aéreo nacional”.

Essa orientação, com a qual concordamos, não se fundamenta apenas na mera leitura da Carta Constitucional e hermenêutica pessoal, mas, sim, de interpretação baseada nos diversos julgamentos do Supremo Tribunal Federal que consolidaram entendimento quanto à exclusividade da União na prestação dos serviços postais.

O STF, no julgamento da ADPF 46, em 2009, sedimentou a orientação aplicada até hoje que consolida os serviços postais como serviços públicos que não podem ser explorados pela iniciativa privada. Destacamos trechos da ementa da ADPF 46 esclarecendo essa concepção:

“(…) 3 — A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional (artigo 20, inciso X). 4 — O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), empresa pública, entidade da Administração Indireta da União, criada pelo decreto-lei n° 509, de 10 de março de 1.969. (…) 6 — A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal. (…)” (grifos das autoras) [3].

Assim, a União exerce privilégio na prestação dos serviços postais, considerados serviços públicos, através dos Correios, e, por consequência, a iniciativa privada não pode explorar esses serviços em concorrência com a União. No corpo do voto do então ministro Eros Grau, ficam nítidos esse entendimento e a incompatibilidade com a Constituição Federal da qual falamos, já que “para que a empresa privada pudesse ser admitida à prestação do serviço postal, que é serviço público, seria necessário que a Constituição Federal dissesse que o serviço postal é livre à iniciativa privada, tal qual o fazem os artigos 199 e 209 em relação à saúde e educação, os quais podem ser prestados independentemente de concessão ou permissão” (grifos das autoras).

Nessa linha, como nossa Lei Maior não concebe tal possibilidade aos serviços postais, qualquer texto de projeto de lei ordinária que almeje abrir os serviços postais para o mercado restará potencialmente inconstitucional.

Apesar de a ADPF 46 se referir ao julgamento mais emblemático, posto que apreciou o âmago da natureza dos serviços postais, em momentos anteriores o STF já aplicava o entendimento de que os Correios prestavam serviço público em exclusividade, como no caso do RE 407.099, em 2004, e da ACO nº 959 [4], em 2008, ambas justificando a imunidade tributária conferida à empresa em razão do escopo público fundamental de sua atividade.

Lembrando que os serviços postais são aqueles relacionados ao envio de carta, telegrama e fabricação de selos, por exemplo. Os serviços de transporte de encomendas já são exercidos em concorrência com a iniciativa privada, embora os Correios também mantenham essa atividade obrigatoriamente à disposição de qualquer cidadão brasileiro para atendimento nos mais remotos lugares — e é daí que também se extrai o caráter essencialmente público dos Correios.

A interpretação firmada pelo STF no julgamento da ADPF 46, inclusive, tem sido aplicada em outras questões relativas aos Correios, a exemplo do reconhecimento da imunidade tributária em favor da empresa pública, mesmo que oferte serviços sob “monopólio” em conjunto com outros em regime de concorrência. O ministro Dias Toffoli, relator no julgamento do RE 627.051, em 2014, encaminhou a tese de que “5 — Não há comprometimento do status de empresa pública prestadora de serviços essenciais por conta do exercício da atividade de transporte de encomendas, de modo que essa atividade constitui conditio sine qua non para a viabilidade de um serviço postal contínuo, universal e de preços módicos”. Destacamos, ainda, que o reconhecimento da imunidade tributária fundamentou-se também “pela impossibilidade de se separarem topicamente as atividades concorrenciais” (grifos das autoras)

Para não nos estendermos, deixamos de transcrever ainda outras jurisprudências da corte que aplicam o entendimento da ADPF 46, como aquelas referentes aos julgamentos do RE 773.992, e dos agravos regimentais na ACO 1454, ACO 790 e no RE 882.938, de 2014, 2015, 2016 e 2018, respectivamente [5], entre outras.

Assim, através da consolidação da temática pelo STF, podemos depreender que: 1) a Constituição da República prevê que cabe exclusivamente à União a prestação dos serviços postais; 2) os Correios mantêm serviços públicos de prestação essencial ao cidadão; 3) a atividade de transporte de encomendas, mais rentável, subsidia a prestação universal dos serviços postais; e 4) as estruturas de ambos os serviços estão entrelaçadas de tal forma que não seria possível separar suas operações.

Portanto, não fica difícil chegar à resposta provável da seguinte questão: é possível proceder com a privatização dos Correios com a interpretação constitucional consolidada nos últimos quase vinte anos?

Caso o Senado Federal, local onde o PL 591/2021 precisará ser também aprovado, leve em conta os julgamentos emblemáticos da Suprema Corte, possivelmente o PL 591/2021 será considerado inconstitucional e remetido ao arquivo.

Do contrário, havendo aprovação, a discussão certamente será transferida, no futuro, para o mesmo local onde a interpretação impeditiva foi formulada — a Suprema Corte.

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[1] Resolução nº 68, de 21 de agosto de 2019, publicada pelo Conselho do Programa de Parcerias e Investimentos da Presidência da República, e Decreto nº 10.066, de 15 de outubro de 2019, da Presidência da República.

[2] Votação ocorrida em Sessão Plenária na Câmara dos Deputados do dia 05 de agosto de 2021.

[3] ADPF 46, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 05/08/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-01 PP-00020 RTJ VOL-00223-01 PP-00011).

[4] RE 407099, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 22/06/2004, DJ 06-08-2004 PP-00029 EMENT VOL-02158-08 PP-01543 RJADCOAS v. 61, 2005, p. 55-60 LEXSTF v. 27, n. 314, 2005, p. 286-297/ ACO 959, Relator(a): MENEZES DIREITO, Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2008, DJe-088 DIVULG 15-05-2008 PUBLIC 16-05-2008 EMENT VOL-02319-01 PP-00001 RTJ VOL-00204-02 PP-00518 LEXSTF v. 30, n. 356, 2008, p. 23-37

[5] RE 773992, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 15/10/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-032 DIVULG 18-02-2015 PUBLIC 19-02-2015/ ACO 1454 AgR, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-042 DIVULG 04-03-2016 PUBLIC 07-03-2016/ ACO 790 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 15/03/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-072 DIVULG 15-04-2016 PUBLIC 18-04-2016/ RE 882938 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 09/02/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-042 DIVULG 05-03-2018 PUBLIC 06-03-2018.

Rachel Leticia Curcio Ximenes é mestre e doutora em Direito Constitucional, especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura (EPM), presidente da Comissão de Direito Notarial e de Registros da OAB-SP e especialista em Direito Notarial e Registral.

Maria Luiza Xavier Lisboa é advogada, pós-graduação em Direito Constituição e Administrativo em conclusão na Faculdade Paulista de Direito – EPD e responsável pela a área de startups do escritório CM Advogados.

Direção Nacional da ADCAP.

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