O dinheiro sumiu no ar

Revista Veja

31/08/2014

 

Inquérito da polícia sobre os descalabros do grupo Galileo mostra que milhões de reais alocados para tirar duas universidades do buraco desapareceram sem deixar rastro

 

A decisão inédita do Ministério da Educação de descredenciar e fechar a Universidade Gama Filho (UGF) e a UniverCidade, no Rio de Janeiro, deixando 18 000 alunos sem escola no ano passado, trouxe à luz os problemas financeiros em que as duas instituições estavam mergulhadas. Agora, uma investigação policial escancara os detalhes do rombo e do enredo escandaloso que o precede: pelas quantias envolvidas, é um dos maiores descalabros já ocorridos na área da educação. O empurrão final para o abismo foi dado justamente pela empresa criada com a apregoada intenção de recuperar as duas universidades — o grupo Galileo, que as encampou em 2010. Como se tratava de entidades filantrópicas, a transferência de responsabilidade dos antigos donos para o Galileo não envolveu compensações financeiras. Em menos de três anos, porém, a má administração do fundador e controlador do grupo, o advogado Márcio André Costa, foi capaz de pulverizar 100 milhões de reais obtidos com uma emissão de debêntures destinada a sanear as finanças das duas instituições.

 

Um inquérito da Polícia Federal, ao qual VEJA teve acesso, concluiu que a maior parte da dinheirama sumiu no ar, e a parte que não sumiu foi parar onde não devia. Pior: o grosso do prejuízo caiu na conta do fundo de pensão dos Correios, o Postalis (o maior do país cm número de contribuintes), que adquiriu quase todo o lote de debêntures — também irregularmente, segundo a PF. Na periferia de todo esse imbróglio, a polícia constatou até a presença de um homem de confiança do senador Renan Calheiros. Encaminhado ao Ministério Público, o inquérito chegou no último dia 15 às mãos da Justiça, com pedido de indiciamento dos envolvidos.

 

À primeira vista, o investimento do Postalis (e dos outros dois compradores, o Petros, fundo de pensão da Petrobras, e um banco) tinha a fachada de um bom negócio. O rendimento das debêntures viria das mensalidades pagas pelos 400 alunos do curso de medicina da Gama Filho, o ponto forte da universidade. Os 100 milhões poderiam de fato impulsionar a recuperação financeira da instituição, àquela altura com uma dívida de 200 milhões de reais. É verdade que, em poucos meses, os recursos arrecadados com as debêntures se transformaram em “um grão de areia diante do tamanho do rombo, logo catapultado a 900 milhões, mas ainda poderiam ter apagado alguns incêndios, como os salários atrasados dos professores. Não apagaram. A PF apurou que cerca de 20 milhões foram para a “família Gama Filho”, antiga dona da universidade, a título de autorização para uso da “marca” da universidade — conceito que não se aplica a uma instituição sem fins lucrativos, como era o caso da UGF. Quanto aos outros 80 milhões, diz o relatório da polícia, ninguém sabe, ninguém viu: não existe nenhum registro contábil de seu uso.

 

De acordo com a investigação, o Postalis também cometeu uma irregularidade ao arrebanhar 75% das debêntures, o triplo do que podia — por ordem do Conselho Monetário Nacional, o limite de investimento dos fundos de pensão nesses casos é de 25%. A PF apurou que a aprovação envolveu a alta cúpula do fundo, inclusive o presidente na época, Alexej Predtechensky, e o diretor financeiro, Adilson da Costa. Ambos foram autuados pelos órgãos de fiscalização dos fundos e tiveram de pagar uma multa por aplicar recursos do Postalis em desacordo com as diretrizes do CMN. Adilson da Costa nem deve ter sentido muito no bolso o preço da autuação: saiu do Postalis em fevereiro do ano passado e, cm junho, surgia como conselheiro no Galileo. Em um desdobramento que não está no inquérito, mas pode ser comprovado nas atas do conselho, outro protagonista desse enredo foi absorvido pelo generoso grupo Galileo. Trata-se de Milton Lyra, lobista de Brasília ligado ao grupo do senador Renan Calheiros (sob cuja órbita de influência estava a direção do fundo de pensão na ocasião do lançamento das debêntures) e intermediário do negócio. No fim de 2011, meses depois da transação, o nome de Lyra apareceu na lista de presenças de uma reunião de acionistas do Galileo.

 

Quase todos os envolvidos nos enrolados negócios do grupo Galileo à época da incorporação da Gama Filho e da UniverCidade estão, hoje em dia, atuando em outras áreas. A direção do Postalis foi trocada. Márcio André Costa deixou o ramo da educação e voltou para a advocacia. Antes de fazê-lo, repassou o Galileo ao pastor batista Adenor Gonçalves dos Santos, que não tinha nenhuma experiência na área; desde o descredenciamento das duas universidades, Santos comanda um grupo que não agrupa nada. A diretoria pediu demissão em fevereiro passado, um ano depois do ato do Ministério da Educação. O pastor continua firme no comando do grupo esvaziado — seu último ato foi entrar na Justiça com pedido de devolução do pouco que chegou a ser pago em rendimentos das célebres debêntures. Os alunos da Gama Filho e da UniverCidade, depois do susto, da incerteza e do tumulto que se seguiram ao fechamento das duas instituições, tiveram a matricula remanejada e hoje seguem seus cursos em outras universidades do Rio de Janeiro.

 

Festival de coincidências

 

Na grande fábrica de perder dinheiro em que se transformou o grupo Galileo, um dos poucos a sair ganhando parece ser Paulo Gama Filho. Além de ter levado parte do dinheiro das debêntures, conforme constatou a polícia, ele circula nas sombras de outro negócio tortuoso; a venda, em 2012, de um prédio de sua então universidade, no Rio de Janeiro. Oficialmente, o imóvel, no centro da cidade, pertencia à Concintra, empresa com sede na Ilha Funchal, em Portugal, que o alugava por 350 000 reais mensais à Gama Filho. Algumas coincidências, porém, levantam a suspeita de que o verdadeiro dono era o próprio Paulo Gama – que assim estaria ganhando dinheiro com a universidade, uma entidade filantrópica. Gama já tinha feito negócio com a Concintra; em 1997, vendeu a ela um apartamento na Flórida, como mostra um registro em cartório local. Tanto nessa transação quanto na do prédio no Rio, em algum momento assina em nome da Concintra o advogado Luis Monteiro da Silva, que vem a ser procurador há décadas da família Gama Filho. Ronald Levinsohn, ex-dono da UniverCidade que se considera prejudicado pelo grupo Galileo e por Gama, dispara: “Contratei uma agência de detetives que apontou Paulo Gama como dono da Concintra. Era ele que embolsava o aluguel”. Monteiro, o advogado, nega que Paulo seja o dono do imóvel. Sobre sua participação nas transações, diz: “Sou procurador de outras pessoas e empresas”. 0s 35 milhões de reais da venda do prédio do Rio foram depositados no Banco Paulista e de lá partiram para destino não revelado. Levinsohn garante: “Localizei o dinheiro em dois paraísos fiscais”. Mais uma coincidência: no ano da venda do edifício carioca, Monteiro recebeu uma doação de 1 milhão de reais. o doador foi Paulo Gama Filho.

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