O PL-591/2021, cuja tramitação no Congresso Nacional o governo tenta acelerar, tem falhas gravíssimas de concepção que podem colocar em risco o consolidado serviço postal do país. E a tramitação atropelada que tem sido dada ao mesmo pela Presidência da Câmara impede que essas imperfeições e riscos sejam devidamente analisados e corrigidos.
Sem passar pelas comissões temáticas, em função do regime de urgência que lhe foi conferido, e sem sequer ter sido analisado por uma comissão especial, como seria minimamente necessário, o PL-591/2021 tem sido, irresponsavelmente, incluído na pauta de votação do Plenário da Câmara.
Até a manhã deste dia 04/08, os deputados sequer haviam recebido cópia da minuta de relatório que se pretende votar em plenário, sem contar os anunciados estudos técnicos que teriam sido feitos pelo BNDES e por consultorias. Uma minuta extraoficial do Relatório que chegou a conhecimento público foi entregue a um veículo de imprensa pelo Ministro da Propaganda, reforçando ainda mais a maneira completamente inadequada que se está tratando o assunto.
Além dessas falhas graves no processo legislativo, o projeto também padece de graves problemas que o ferem de morte:
Inconstitucionalidade
O projeto já nasce com um vício incontornável: é inconstitucional. A Constituição Federal é bem clara a respeito da responsabilidade da União de manter o serviço postal, a ponto de na ADI-6635, que discute a constitucionalidade desse movimento do governo federal, a Procuradoria Geral da República já ter afirmado, por duas vezes, que não se pode privatizar a parte do serviço postal que integra a área de reserva, mais comumente tratada por monopólio. Por consequência, a inclusão dos Correios no PPI e no PND não se sustenta, pois dependeria de uma emenda à Constituição, o que não foi feito.
Inexistência de fundamentação técnica prévia
O projeto foi originalmente entregue ao governo em outubro de 2020, antes mesmo que se tivesse notícia dos estudos que estavam sendo conduzidos ou que seriam conduzidos pelo BNDES. Tais estudos, feitos, portanto, depois da apresentação do projeto, ficaram restritos ao governo, sendo que apenas recentemente o BNDES publicou alguns detalhes desse trabalho em seu site. Não se pôde debetê-los adequadamente e, menos ainda, buscar outras opiniões para validar ou não as premissas e conclusões ali trazidas.
Risco de recuo na universalização
Diferentemente do que acontece em grande parte dos países, no Brasil os Correios têm desenvolvido suas operações sem demandar aportes do Tesouro Nacional. A Empresa alcança praticamente o Brasil todo, o que representa um elevado custo de manutenção da infraestrutura de atendimento e entrega. Em apenas 324 dos 5.570 municípios a receita gerada localmente cobre os custos da infraestrutura. Além disso, mais de 4.000 das mais de 11.500 agências são mantidas a partir de parcerias com Prefeituras Municipais, algo que tem se viabilizado principalmente por se tratar de duas entidades públicas. Sob controle privado, isso pode mudar, como já aconteceu em outros países, incluindo Portugal, onde a empresa privada começa a desativar agências pouco lucrativas, reduzir pessoal e tomar outras medidas de controle de custos que afetam severamente o atendimento, prejudicando a população e as empresas que dependem dos correios para o comércio eletrônico.
Insegurança Jurídica na avaliação dos Correios
Os Correios são uma empresa grande e complexa, com uma quantidade significativa de empregados e de ações ainda inconclusas na justiça. A quantificação dos passivos trabalhistas e previdenciários da Empresa é, portanto, muito complexa, podendo demandar muito mais tempo do que o usualmente necessário em processos assim, sem contar a dificuldade de ter precisão num cálculo como esse. O risco de judicialização posterior, por falhas nessas quantificações, com imputação de prejuízos à União, é significativo.
Aumento de Preços e tarifas devido à perda de imunidade tributária
Os Correios são percebidos hoje pela justiça como longa manus da União, ou seja, uma extensão da própria União, e, por isso, gozam de imunidade tributária recíproca. O montante correspondente aos tributos envolvidos chega perto de R$ 2 bilhões. Sob controle privado, será impraticável sustentar a imunidade tributária recíproca, o que significará, se houver repasse aos preços e tarifas, um aumento de cerca de 10%, onerando os cidadãos e empresas e afetando os negócios, especialmente o comércio eletrônico.
Perda de receita com dividendos pelo Tesouro Nacional
Com os Correios auferindo resultados anuais acima de bilhão e concretas perspectivas de crescimento de negócios para a empresa nos próximos anos, a União poderia projetar o recebimento de dividendos anuais dos Correios na ordem de, no mínimo, R$ 250 milhões, ou seja, não só não precisaria aportar recursos na empresa, mas ainda poderia auferir dividendos. Com a privatização, não haveria mais o recebimento de dividendos.
Perda de empregos
OS Correios geram, de forma sustentável, mais de 90 mil empregos diretos e dezenas de milhares indiretos. Se o ente privado que adquirir a empresa numa privatização seguir a trilha convencional de buscar rápida redução de custos eliminando empregos, teremos ainda mais brasileiros se somando aos cerca de 15 milhões de desempregados da atualidade. Uma estabilidade temporária não resolve esta questão.
Emendas Ignoradas
Na CDEICS foram apresentadas mais de 100 emendas ao projeto e nenhuma foi considerada. O correto teria sido que cada emenda fosse criteriosamente apreciada na passagem do projeto pelas comissões técnicas ou, no mínimo, que tivessem sido apreciadas com atenção numa comissão especial. Nada disso foi feito e o projeto caminha para ser levado a plenário sem as avaliações técnicas de comissões e sem a apreciação prévia das emendas, algo completamente fora do aceitável; uma verdadeira afronta aos brasileiros, no estilo “passar a boiada”.
Riscos para os cidadãos, empresas, governo e mercado
Da forma como tem sido conduzida a tramitação do PL-591/2021, estão sendo criados riscos muito sérios para os cidadãos, para as empresas, para o próprio governo e para o mercado.
Os cidadãos podem passar a pagar muito mais pelo serviço e ter o atendimento piorado, como aconteceu em Portugal.
As empresas podem enfrentar aumento de preços e até ver suas operações de comércio eletrônico inviabilizadas.
O governo, que conta com os Correios hoje para desenvolver grandes projetos de logística, como a distribuição de livros didáticos, de medicamentos e de urnas eletrônicas, pode enfrentar aumento expressivo de preços, já que os Correios trabalham nesses projetos com margens extremamente apertadas, sem contar a questão da fé pública, do sigilo e da segurança.
E o mercado pode também ser afetado, incluindo os players que atuam hoje no segmento de encomendas e que passarão a ser regulamentados, as franquias, que poderão enfrentar modificações ou até a descontinuidade em seus contratos, os grandes marketplaces, que poderão ter seus custos elevados e eventualmente passarem a depender de um concorrente para a realização de suas entregas.
Enfim, se for levada assim a cabo a privatização dos Correios, isso só beneficiará mesmo os que sempre ganham: especuladores, intermediários e banqueiros, ficando a conta para ser paga pelos cidadãos, pelas empresas e pela própria União.
ADCAP – Associação dos Profissionais dos Correios