Entrevista com Marcos César, Vice-Presidente da ADCAP

 Por Márcio Allemand, para a ADCAP

Entrevistamos hoje o Vice-Presidente da ADCAP – Associação dos Profissionais dos Correios, Marcos César Alves Silva. Formado pela Escola Superior de Administração Postal, Marcos César exerceu diversas posições executivas nos Correios ao longo de sua carreira, incluindo atuação, por 5 anos, como conselheiro no Conselho de Administração.

1 – Marcos César, como você avalia esse movimento do governo federal de tentar privatizar os Correios?

Essa iniciativa do governo federal está completamente fora de contexto. Estamos no meio de uma pandemia de escala global, com problemas sociais gravíssimos a serem enfrentados, que vão da vacinação e do tratamento médico da população ao combate à fome e ao desemprego. Os Correios são uma infraestrutura pública em pleno funcionamento que tem um papel muito importante no enfrentamento desse quadro, pois as pessoas e empresas têm encontrado no comércio eletrônico uma solução para suas necessidades e, no caso das empresas, uma maneira de sobreviver ao momento econômico e à necessidade de afastamento social. No Brasil, os Correios são a principal infraestrutura de logística do comércio eletrônico. Não se devia, jamais, cogitar em mexer nos Correios nesse momento.  

2 – Marcos César, o PL 591/2021 acabou de ser aprovado na Câmara e agora segue para o Senado. Como você avalia a tramitação do PL até aqui?

Infelizmente, a esmagadora maioria que o governo federal tem hoje na Câmara dos Deputados e o alinhamento político com o presidente daquela casa são capazes hoje de aprovar praticamente qualquer proposta de interesse do governo. Não foi diferente com o caso dos Correios. O PL-591/2021 não passou pelo crivo das comissões da Câmara, porque lhe foi dada urgência a partir de proposta do presidente da casa. Na sessão plenária, as emendas apresentadas pelos partidos de oposição foram rejeitadas sem o mínimo de debate a respeito das questões que as motivaram. Enfim, a tramitação desse projeto deve servir de alerta aos brasileiros sobre os riscos que correm com a captura de suas instituições pelo governo de plantão. Isso não é bom para a democracia e possibilita a aprovação de leis absurdas e cheias de vícios graves, como ocorreu nesse caso.

3 – Sobre o projeto e a argumentação usada pelo governo federal para defendê-lo, vou elencar alguns aspectos e pediria que comentasse sua visão sobre cada um deles:

– Primeiramente perguntaria se você considera o projeto constitucional?

O projeto não é constitucional. Isso está claramente demonstrado numa Ação Direta de Constitucionalidade (ADI-6635) que a ADCAP apresentou ao STF e que já conta com diversas instituições como amicus curiae e pareceres da PGR que reconhecem a inconstitucionalidade da iniciativa do governo federal. Se tivesse recebido a adequada avaliação na Câmara, isso teria sido percebido, mas o atropelo dado à tramitação permitiu que o projeto seguisse mesmo sendo claramente inconstitucional. Esperamos que a ministra Carmem Lúcia do STF aprecie nossa ADI nos próximos dias.

– Ao propor a privatização dos Correios, o governo federal trata o serviço postal como exploração de atividade econômica. Você concorda com essa abordagem?

O serviço postal é serviço público, conforme estabelece com cristalina clareza o artigo 21 da Constituição Federal. Não se trata de exploração de atividade econômica. Basta ler o citado artigo para ver que, enquanto para os Correios se prevê a obrigação da União de manter o serviço postal, para outros serviços distintos se prevê a possibilidade de exploração por meio de concessão ou permissão. Admitir que os serviços postais possam ser prestados por meio desses mecanismos foi uma tentativa do governo federal de misturar indevidamente coisas bem distintas, para tentar justificar o atalho na tentativa de levar adiante um projeto de Lei em vez de uma emenda constitucional. 

– Em sua argumentação, o governo afirma que há tendência de privatização dos serviços postais. Isso procede?

Não procede. Em apenas 8 países do mundo os correios são totalmente privados como querem fazer no Brasil. Os países em questão são: Aruba, Cingapura, Grã-Bretanha, Líbano, Malásia, Malta, Países Baixos e Portugal. Somadas as áreas desses países, constata-se que caberiam todos dentro do Estado do Mato Grosso. Além disso, em nenhum dos 20 maiores do mundo em extensão territorial o correio é privado. A tendência geral é, portanto, de se ter correios públicos, especialmente nos países com grande extensão territorial como o Brasil, que é o 5º maior.

– Quanto a tarifas, alega-se que monopólios acabam sempre em valores elevados e que uma privatização estimularia a concorrência e produziria redução de tarifas. Como você avalia essa questão no contexto brasileiro?

Apesar de ter a 5ª maior área dentre os países, a tarifa da carta brasileira é uma das menores do mundo. É inferior, inclusive, à média mundial. Temos, portanto, que o privilégio da União de prestar o serviço postal da área de reserva (correspondências) não provocou a existência de tarifa elevada no país, mas sim, o contrário. Com um monopólio privado, como prevê o PL-591/2021, essa situação deve mudar e os clientes passarão a pagar preços maiores, sem contar agravantes, como a disposição incluída no PL que prevê a possibilidade de as cartas terem preços diferenciados dependendo da origem e destino dos objetos, algo completamente oposto ao praticado no mundo todo.

4 – Além dos serviços de correspondência, cuja prestação é privilégio da União, os Correios prestam também serviços de encomendas. Uma privatização dos Correios estimularia a concorrência no mercado de encomendas como alega o governo federal?

Acho que será o contrário. Hoje, os Correios estão no mercado, oferecendo serviços que chegam a todo o país, incluindo os locais onde não há rentabilidade na operação. O operador privado pode reduzir as áreas atendidas por serviços concorrenciais, pois esses serviços não estarão sujeitos à obrigação de universalização.

Importante notar que o serviço de encomendas é de prestação livre no Brasil, ou seja, não há monopólio abrangendo esse serviço. Assim, há milhares de empresas transportando encomendas, incluindo filiais de grandes multinacionais. Os Correios são, portanto, mais um player num mercado já totalmente aberto à concorrência.

5 – Os Correios já estão presentes em praticamente todo o País. Você considera que as disposições do PL-591/2021 sobre manutenção de agências dos Correios em áreas remotas é suficiente para garantir a manutenção da universalização do serviço postal?

Penso que a disposição que trata desse ponto no PL-591/2021 é insuficiente, pois possibilita interpretações subjetivas e deixa à regulação posterior o detalhamento dessa salvaguarda. Uma emenda apresentada tentou corrigir isso, delimitando objetivamente a presença obrigatória do atendimento postal. Infelizmente, em função do processo legislativo adotado, com a completa desconsideração das emendas e dos destaques apresentados pelos partidos de oposição, essa emenda também foi rejeitada, permanecendo o vício no PL.

6 – Quanto aos resultados econômico-financeiros dos Correios, você considera que, mesmo com os lucros registrados nos últimos anos, a manutenção dos Correios como estatal pode trazer riscos fiscais para a União, como alega o governo federal?

O Ministério da Economia tem assento nos conselhos de administração e fiscal dos Correios. Em função disso, o órgão tem conhecimento de estudo feito pelos Correios que apontou não haver risco de continuidade operacional para a empresa nos próximos 10 anos, nos quais as projeções apontam lucros bilionários, como já aconteceu em 2020 e está acontecendo em 2021. Mesmo assim, alguns técnicos do governo continuam alegando risco fiscal para a União com a manutenção dos Correios como empresa pública. Só no Brasil da atualidade algo assim poderia acontecer: membros do governo mentindo sistematicamente para induzir a população a erro.

7 – O governo federal acionou recentemente uma campanha publicitária defendendo a privatização dos Correios. Como você analisa essa iniciativa?

Num momento em que faltam recursos para a saúde e que as pessoas passam fome no país, a campanha patrocinada pelo Ministério das Comunicações para defender a privatização dos Correios, com a aplicação de dezenas de milhões de reais, é absurda e merece ser questionada, com a responsabilização dos agentes públicos que dela trataram.

8 – Em algumas cidades brasileiras o serviço dos Correios é alvo de reclamações, principalmente em relação a atrasos na entrega de correspondências. O que você pode comentar a respeito?

Historicamente, os indicadores de qualidade do serviço postal se situam acima de 97%. Nos últimos tempos, em função da falta de contratação de pessoal, deliberada pela direção da empresa, a qualidade geral do serviço postal caiu em alguns locais. Apesar de o indicador médio de qualidade ainda estar acima de 90%, há regiões que já sofrem com atrasos por falta de pessoal. Em minha opinião, é uma situação inaceitável, pois a empresa tem recursos e qualquer trabalhador dos Correios, por mais modesta que seja sua função, sabe que há dois recursos que não podem faltar nunca na empresa: pessoas e transporte. Se falta algum desses recursos, é falha gravíssima da direção.

9 – Você é contra ou a favor de parcerias público privadas? Acha que seria viável algo nesse formato numa eventual modernização dos Correios?

Acredito que haja diversas oportunidades de parcerias a serem estabelecidas entre os Correios e empresas privadas, para oferecer novos serviços ou complementar os serviços já oferecidos. A lei nº 12.490/11 viabiliza isso, sem nenhuma necessidade de mudança na natureza dos Correios ou em seu controle de capital. Sou a favor de que os Correios explorem as possibilidades abertas pela nova lei, sempre com respeito às demais leis e com a transparência e publicidade necessárias.

10 – Marcos César, como você enxerga que poderia ser o futuro dos Correios caso o Senado não aprove o projeto? Você acredita que os brasileiros poderiam ser prejudicados com isso?

Os brasileiros serão prejudicados se o Senado aprovar o PL-591/2021. Não acredito, porém, que isso aconteça, em função de tudo o que comentamos nessa entrevista. Assim, enxergo um futuro muito promissor para os Correios, com o encerramento dessa discussão sobre privatização, a direção da empresa sendo profissionalizada e voltando a seguir o planejamento estratégico da empresa e o que estabeleceu a Lei nº 12.490/11. Neste cenário, os brasileiros continuarão contando com um serviço postal de qualidade, a preços excelentes diante dos desafios logísticos do país. E a União não será onerada, como não tem sido, com o custeio da universalização da prestação do serviço postal no Brasil.


Direção Nacional da ADCAP.

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