O Globo
04/12/2013
Há dois anos, o funcionário do Correios Aluísio José Rodrigues, de 45 anos, busca a realização de uma cirurgia que lhe devolverá a capacidade de mastigar, perdida após um acidente de moto, em 2006, quando trabalhava como carteiro motociclista, em Angra dos Reis. Ele precisa trocar as próteses implantadas em 2008, que estão desalinhadas e não lhe permitem abrir a boca mais do que um centímetro. Para sua surpresa, o hoje atendente comercial descobriu que, para o Correios, a cirurgia já havia sido feita, e o Hospital Espanhol chegou a cobrar R$ 502.543,24 pelo procedimento que nunca aconteceu. Apesar de autorizado pela estatal, o pagamento não chegou a ser feito.
— Tenho uma frustração muito grande na minha vida por não poder abrir a boca. Acabo de almoçar e já me sinto mal. Preciso tomar remédio para ajudar na digestão, porque engulo sem mastigar — conta Aluísio, que sente falta de coisas simples: — Morro de vontade de morder um hambúrguer enorme. Eu me sinto enganado, indignado por ter sido vítima de um esquema tão sujo.
A cirurgia fantasma é uma das investigadas pelo Núcleo de Repressão a Crimes Postais, da Polícia Federal (PF), que apura um esquema de desvio de dinheiro por meio de operações superfaturadas, algumas nem realizadas.
O pagamento da cirurgia de Aluísio foi autorizado, em novembro do ano passado, por Marcos da Silva Esteves, afastado da gerência de Saúde da estatal, em abril deste ano, e denunciado pelo Ministério Público Federal por peculato (quando o funcionário público se apropria de dinheiro ou bem em razão do cargo) e extravio ou inutilização de documento.
Segundo o Correios, no entanto, essa cirurgia não chegou a ser paga. Fontes ligadas à PF relatam que um funcionário percebeu a fraude e não realizou o pagamento.
Cobrança pelo telefone
Uma funcionária do Hospital Espanhol, que emitiu a conta hospitalar, ligou duas vezes cobrando os valores. Na primeira ligação, o servidor do Correios respondeu que não fez o pagamento porque não havia a comprovação do serviço prestado. No segundo telefonema, a funcionária do hospital teria perguntado se ele não conhecia o médico Carlos Alberto Alonso Filho. O servidor respondeu: “Não. Por quê? Eu deveria?”. A ligação foi interrompida de imediato.
A funcionária do Hospital Espanhol é Esmeralda Chrystiane Kelly Pereira da Silva, responsável pelo setor de contas a receber. Ela foi indiciada, na última sexta-feira, por se unir a funcionários públicos para cometer peculato, estelionato e por formação de quadrilha. Pelos mesmo crimes foi também indiciado o diretor médico do Espanhol, Júlio César Teixeira Ramos, que assinou e carimbou a conta hospitalar da cirurgia que não existiu.
O médico Júlio César não foi localizado pelo EXTRA, e a direção do hospital não retornou as ligações. Já Kelly preferiu não dar entrevista.
Carlos Alonso é investigado por usar o nome de Marcos Esteves para propor negociatas envolvendo médicos, fornecedores de próteses e hospitais.
Na documentação, o cirurgião responsável pela operação de Aluísio é Gerson Hayashi.
— A cirurgia do Aluísio não foi realizada mesmo. Sei que é um material caro, mas não tenho conhecimento de valores exatos — disse ele, acrecentando que indicou o fornecedor, a Orthoface.
Segundo o médico que trouxe a técnica de implante de próteses TMJ Concepts para o Brasil, Éber Stevão, de Curitiba, o valor da nota de cobrança enviada pelo Espanhol aos Correios é superfaturado:
— Todo mundo ganha, o hospital, o médico, o revendedor. Acaba virando um comércio. Esse valor é imoral. Isso é um esquema que se utiliza do sofrimento do paciente como trampolim para o enriquecimento.
Cirurgia milionária
Uma operação de coluna de uma idosa, que custou quase R$ 1 milhão só em material para o Correios, é uma das cirurgias que estão sendo investigadas pela PF, como o EXTRA revelou em agosto. A autorização foi assinada pelo então gerente Marcos Esteves.
Empresas ligadas
O esquema de fraudes envolveria empresas de material cirúrgico. A empresa AC Consultoria, que comprou o material cirúrgico por R$ 65.208, tem como sócios o médico Carlos Alberto Alonso Filho e Aline Gomes de Oliveira. Alonso também é dono do Centro de Clínica Médica e Fisiatria Dr. Carlos Alonso, em Petrópolis, no qual é sócio de Gilberto Silva Cabral. Esse último aparece ainda como sócio de outra empresa, a O2 Surgical, empresa que vendeu o material comprado pela AC Consultoria para os Correios por R$ 961.886,56.
Negócios
Airton Policarpo de Oliveira, outro sócio da O2 Surgical, afirmou que não sabe nada sobre os negócios da sua empresa. O EXTRA não conseguiu localizar Marcos Esteves, Carlos Alonso e Gilberto Cabral.
Assessor indiciado
No dia 24 de outubro, a PF indiciou o assessor da direção do Correios no Rio, João Maurício Gomes da Silva. Segundo a PF, ele fraudou o plano de saúde da estatal com a internação de sua mulher que custou R$ 53 mil. No dia em que, segundo o prontuário, a paciente teve um choque séptico e estava sedada, ela aparece em fotos postadas numa rede social, numa festa de aniversário.
A nota enviada pelo Correios
“A investigação conduzida pela Polícia Federal foi solicitada pela Diretoria Regional dos Correios no Rio de Janeiro em junho, imediatamente após a instauração de sindicância interna. Além disso, a Administração Central dos Correios em Brasília encaminhou denúncia sobre o caso ao Ministério Público Federal, em setembro. Para aprimorar os controles, a gestão e a transparência do plano de assistência médica, os Correios estão modernizando o sistema com a implantação de uma caixa de assistência no formato de autogestão. Isso significa, segundo o Correios, melhoria da gestão com implantação de segregação de funções, auditoria interna e externa com dedicação exclusiva, alteração do processo de liberação de procedimentos e aquisição de OPME (órtese, próteses e materiais especiais). Além disso, serão aprimoradas as auditorias médicas em todas as suas etapas, desde a autorização do início do tratamento até a finalização do processamento das contas médicas, incluindo a auditoria de “beira de leito”. A empresa promete ainda a otimização da atual rede credenciada, incluindo a criação de rede de referência; liberação on-line para a realização de procedimentos, com eliminação da guia impressa previamente; ouvidoria e central de atendimento e relacionamento com o beneficiário; e utilização do cartão magnético nos atendimentos médicos resultando na eliminação das guias de papel, sem custo adicional aos beneficiários.”